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O que está sendo feito com relação às cargas perigosas no Brasil, pós Beirute?

out, 07, 2020 Postado porSylvia Schandert

Semana202041

Desde a catastrófica explosão em Beirute, envolvendo nitrato de amônio, em 4 de agosto deste ano, que causou mais de 200 mortes  e mais de 6.500 feridos, os operadores portuários em todo o mundo têm encarado com seriedade a movimentação de cargas perigosas.

Não tem sido diferente em Santos, o principal porto brasileiro em movimentação de contêineres e também de cargas perigosas conteinerizadas. O local movimentou 45,7% de todas as cargas perigosas da Costa Leste da América do Sul nos primeiros sete meses deste ano – o equivalente a 42.869 TEU.

Como as autoridades brasileiras reagiram

Uma investigação de três semanas chamada ‘Operação Relíquia’, destinada a fazer uma auditoria de todas as cargas perigosas no Porto de Santos, começou no dia 21 de setembro, liderada pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

“Desde a explosão de Beirute, as autoridades brasileiras têm tentado melhorar as regras, as regulamentações e a supervisão desta atividade, o que tem dado frutos”, afirmou um gerente de terminal em Santos, que não quis ser identificado. “Há muito mais profissionais e movimentos para trazer mais regulamentações para garantir que isso não aconteça em Santos, onde muitos fertilizantes são importados a granel, carga fracionada e em contêineres para alimentar nosso crescente setor de agronegócio. Depois dos incêndios da Ultracargo e da Localfrio [em 2015 e 2016] também tivemos muito mais regras e regulamentações e monitoramento. Espero que as autoridades se concentrem nas áreas certas e não criem muitos obstáculos burocráticos apenas por causa disso. ”

E seu pensamento está em consonância com o de Luis Resano, diretor executivo da Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (ABAC), que formou um novo comitê para monitorar as questões de segurança no Brasil para seus membros: o Comitê de Qualidade, Segurança e Meio Ambiente Saudável.

“Obter 100% de segurança e proteção para todas as cargas é muito difícil, mas tentamos chegar o mais perto possível disso”, disse ele à DatamarNews. “Podemos transportar mercadorias perigosas, mas devemos sempre tomar todas as medidas para prevenir acidentes. O que aconteceu em Beirute foi pura negligência, pois eles não cuidaram dessas questões de segurança. ”

“Temos muitas empresas de grande porte, como a Braskem, com quem nossos integrantes lidam regularmente, por isso é mais fácil monitorá-las. Com a Braskem, e outras grandes empresas, agora temos conhecimento de quase todas as suas cargas e quais medidas de segurança são necessárias, mas com outras empresas menores nem sempre temos tantos dados e declarações erradas sobre cargas perigosas costumam ser motivo de preocupação. ”

Resano acrescentou ainda que no início de outubro foi formada uma força-tarefa com o Ibama, a Antaq (órgão portuário e hidroviário) e o Ministério público da Justiça para buscar  novas formas de administrar produtos perigosos.

 

Incidentes no passado recente

O porto de Santos tem um triste histórico de incêndios, com o acidente de 2015 no terminal da Ultracargo (veja foto abaixo), na Alemoa, margem direita do porto, sendo o pior deles.

Essa enorme explosão, na maior instalação de armazenamento de granéis líquidos do Brasil, levou nove dias e necessitou de 80 bombeiros para ser contida, e a espessa fumaça preta pode ser vista por quilômetros ao redor, e fez com que a estrada de entrada principal do porto fosse fechada por vários dias. Uma espessa nuvem negra coloriu o céu por mais de 48 horas e muitos residentes nas áreas vizinhas foram para o hospital com problemas respiratórios.

Segundo o Grupo Ultra, proprietários do local, o terminal era utilizado para armazenamento de combustíveis (incluindo etanol e gasolina), produtos químicos, óleos vegetais, etanol e diversos produtos corrosivos. Cinco embarcações do vizinho terminal Brasil Terminal Portuário (BTP) foram redirecionadas para fora da área.

E o acidente da Ultracargo foi seguido por um incêndio químico em janeiro de 2016 no depósito de contêineres da Localfrio, na margem esquerda do porto (ver foto abaixo), no Guarujá, que resultou na hospitalização de 66 trabalhadores. No início, pensou-se que a fumaça espessa continha uma mistura perigosa de amônia, mas depois foi confirmado que houve a liberação de produtos químicos menos tóxicos, principalmente cloro. Oterminal do Tecon Santos, operado pela Santos Brasil, foi fechado por um período.

Na época, os bombeiros disseram que a água da chuva penetrou em cerca de 20 contêineres, causando uma reação química.

O então prefeito do Guarujá, Mário Antonieta de Brito, pediu que as pessoas ficassem longe da chuva que poderia “conter elementos químicos que queimassem a pele”.

Além disso, em 2013, o terminal açucareiro da Copersucar viu 180.000 toneladas de açúcar pegar fogo e danificar quatro armazéns.

E não é só Santos.

No terminal de contêineres do Porto de Chibatão, que atende o complexo industrial de Manaus e a zona franca, em agosto deste ano, um relâmpago provocou um incêndio em um contêiner que se espalhou para outros 35 nas proximidades, alguns dos quais continham gás e ácido sulfúrico, causando uma explosão. Um cheiro tóxico foi sentido nas proximidades do terminal.

Portanto, com o porto de Santos desempenhando um papel tão importante na economia do Brasil – abrigando cerca de 28% de todo o comércio exterior e 40% do comércio de contêineres – é muito importante que os grandes incêndios e acidentes sejam reduzidos ao mínimo, mas com tantas instalações de granéis líquidos no porto e tantos produtos perigosos sendo transportados por contêiner, 100% de segurança nunca será alcançado, como quase todos os usuários do porto admitem.

“Infelizmente, não é possível garantir 100% de segurança o tempo todo”, disse Resano, da ABAC, e isso foi ecoado por várias outras vozes entrevistadas para esta matéria. “Mas podemos tentar da melhor maneira possível tomar medidas que cheguem o mais próximo de 100% que for humanamente possível, sem inviabilizar economicamente o transporte dessas mercadorias”.

A ABAC representa seis companhias marítimas de bandeira brasileira (Aliança Navegação, Log-In Logística, Mercosul Line, Norsul, Flumar e Hidrovias, que começou como uma operadora de barcaças com minério de ferro e soja e agora também possui duas embarcações e movimenta bauxita pelo litoral brasileiro) , e também trabalha em estreita colaboração com a Syndarma  (Sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima) onde Resano atuou em função semelhante por quase uma década.

Comércio de cargas perigosas na Costa Leste da América do Sul

Em relação à faixa de comércio da Costa Leste da América do Sul, o porto de Buenos Aires (incluindo TRP, BACTSSA e terminal 4 em Puerto Nuevo mais Exolgan em Dock Sul) vem em segundo lugar, atrás de Santos (ver tabela abaixo), com cerca de 16,4% ( 44.014 TEU) do total movimentado desde o início de 2019 (quando a Datamar começou a contabilizar esses números) até ao final de julho. Buenos Aires movimentou 15.448 TEU durante os sete meses de 2020 até o final de julho, abaixo dos 15.142 TEU do ano passado, mas mantendo uma participação de mercado de 16,5% de todas as movimentações de cargas perigosas da região do ECSA em contêineres.

Paranaguá, no estado do Paraná, no sul do Brasil, vem em terceiro lugar na ECSA e em segundo lugar no Brasil, com 17,656 TEU (de janeiro de 2019 ao final de julho de 2020) e 6,6% do total geral da ECSA para todo o período.

Montevidéu, no Uruguai, (com 16.944 TEU) seguido por Itapoá (12.194 TEU), compõe os cinco principais portos da ECSA para cargas perigosas.

wdt_ID PORTOS 2019 (TEU) % 2019 2020 (TEU) % 2020
1 SANTOS 44.968 46% 42.869 46%
2 BUENOS AIRES 16.142 17% 15.448 16%
3 PARANAGUA 6.480 7% 6.085 6%
4 MONTEVIDEO 6.729 7% 5.651 6%
5 ITAPOA 3.977 4% 4.653 5%
6 OUTROS 19.459 19.9% 19.118 20%
Fonte: DataLiner

Nos primeiros sete meses de 2020, Paranaguá teve forte desempenho (com mais de 6.000 TEU) e ocupou a terceira colocação, ultrapassando Montevidéu, seguido por Itapoá, Salvador, Navegantes e Zarate, na Argentina.

Embora Maersk Line, MSC e Hamburg Sud liderem os rankings dos armadores para a maioria dos índices, quando se trata de cargas perigosas, é a transportadora alemã Hapag Lloyd que lidera o pódio (veja o gráfico abaixo).

Para o período de 19 meses (janeiro de 2019 ao final de julho de 2020), a Hapag Lloyd transportou 72.842 TEU de / para os portos da ECSA, o que lhes deu uma participação de mercado de 27,2%. Seguiram-se Hamburg Sud, com 24,4% de participação, e 65.355 TEU, depois MSC com 12,1% (32.363 TEU), Maersk Line com 10,6% (28.385 TEU) e CMA CGM com 8,3% de participação (22.217 TEU).

A Hapag Lloyd não se manifestou para comentar, mas um consultor em Santos, que está familiarizado com o assunto, disse que a empresa alemã tem uma série de contratos de longo prazo com algumas grandes empresas farmacêuticas e é por isso que lidera na região do ECSA.

A Ocean Network Express (ONE) surge na respeitável 6ª posição com 6,7% de market share e 18,031 TEU, com bons volumes de cargas perigosas sendo escoadas tanto por Santos como por Buenos Aires, onde a transportadora japonesa usa o terminal da Exolgan no Dock Sul, que fica próximo aos terminais químicos e petroquímicos da região.

Patrick Campbell, presidente da ONE na Argentina, disse que as autoridades argentinas têm garantido que tudo esteja em ordem em relação a cargas perigosas. Em Buenos Aires, a Administração Geral dos Portos (AGP) tem a responsabilidade de garantir que os terminais estejam de acordo com os procedimentos de segurança, e trabalha em estreita colaboração com o Ministério da Defesa e outros departamentos governamentais.

Campbell disse ao DatamarNews que as mercadorias perigosas mais comuns enviadas pelo porto de Buenos Aires por sua linha e outras são “produtos químicos e fertilizantes”, mas também, para ONE, airbags para a indústria automobilística. Tanto Buenos Aires quanto a região do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) entre Santos e São Paulo são regiões que concentram montadoras de automóveis e há muitas exportações de ida e volta entre os dois países do Mercosul.

Outras considerações sobre segurança

Peter McKay,  Diretor Editorial da tradicional e conceituada revista especializada no setor, Hazardous Cargo Bulletin (HCB), disse que desde a catástrofe de Beirute, os reguladores têm afiado suas garras ao redor do mundo para tentar melhorar os procedimentos de segurança e monitoramento.

“Com relação ao que aconteceu em Beirute, o nitrato de amônio é, obviamente, regulamentado pelo Código IMDG e, se as regulamentações forem seguidas, não deve haver nenhum problema”, explicou McKay à DatamarNews.

“Os problemas surgem – e isso também é verdade para a explosão de Tianjin [que matou 173 pessoas após uma explosão em um local de estocagem de contêineres em agosto de 2015] –  quando o produto está sendo armazenado em terra, especialmente se – como foi o caso em Beirute e Tianjin – isso está sendo feito de maneira insegura.

“As operações dentro das áreas portuárias provavelmente estão sob a legislação nacional (por exemplo, no Reino Unido são os Regulamentos de HSE para Mercadorias Perigosas em Áreas Portuárias de 2016), e fora da área portuária imediata estariam sob outra legislação industrial ou de Segurança & Saúde (por exemplo, no Reino Unido é COMAH – Regulamentos de Controle de Riscos de Acidentes Graves).

“Tanto em Beirute como em Tianjin, parece ter havido um elemento de evitação intencional de quaisquer regulamentos e as autoridades não estavam cientes dos perigos ou optaram por não fazer nada.”

No Brasil, o monitoramento e a regulamentação das questões de segurança nas áreas portuárias estão sob responsabilidade da Antaq e do Ibama (que cuida da segurança ambiental) e, eventualmente, das prefeituras. Em Santos, por exemplo, estão envolvidas as prefeituras de Santos e Guarujá (respectivas margens direita e esquerda do porto de Santos), assim como várias secretarias do governo do estado de São Paulo na cidade de São Paulo. Todos esses órgãos vão, então, colaborar e se reportar à Autoridade Portuária de Santos (antiga Codesp, atualmente em processo de privatização), antes de uma decisão final.

 

“Infelizmente, em alguns aspectos, muitos cozinheiros estragam o caldo”, disse um executivo de alto cargo em uma associação que usa o porto de Santos, mas que preferiu permanecer anônimo. “Às vezes, esses vários órgãos têm suas próprias agendas e tentam agir por razões políticas e isso pode causar atrasos na implementação de medidas de segurança.”

Fora das áreas portuárias, a responsabilidade pelo manuseio seguro de cargas perigosas está sob a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). São de responsabilidade do órgão as áreas de armazenamento fora dos portos e a movimentação de cargas perigosas por meio de caminhões.

Em relação à Santos e às cargas perigosas movimentadas em contêineres, os volumes são divididos entre os três terminais principais – Brasil Terminal Portuário (uma joint venture entre Terminal Investment Limited da MSC Line -TIL- e terminais AP Moeller da Maersk Line), DP World Santos e Bovespa citou o Tecon Santos, da Santos Brasil – mas a DP World pode ter um pouco mais, pois hospeda o serviço da Hapag Lloyd no Golfo, Caribe e nos Estados Unidos, e a Hapag é a transportadora líder no transporte de mercadorias perigosas em contêineres. O serviço da Hapag na Ásia atualmente faz escala na Santos Brasil, e traz um grande número de contêineres de carga perigosa.

Gustavo Costa, pesquisador de logística de contêineres da Universidade de São Paulo (USP) e ex-executivo de logística e cabotagem da Hamburg Sud por mais de 20 anos, também destacou os comentários anteriores de Resano de que “nada era 100% seguro”, mas um  processo contínuo de interação com os embarcadores foi essencial para manter a cadeia de logística de cargas perigosas o mais segura possível.

“Nada é 100% seguro nesta área, mas quando eu estava com a Hamburg Sud, passamos muito tempo repassando aos clientes lembretes sobre todos os regulamentos; não apenas na segurança e na estufagem de cargas perigosas, mas também no tráfico de drogas.

“Nossa principal preocupação era que fossem contratados terminais de contêineres para estufar a carga sem verificar o que eles estavam fazendo. Um grande cliente químico encontrou vazamentos de líquidos e descobrimos que os caras estavam aproveitando 100% do espaço do contêiner e movendo e virando as cargas de cabeça para baixo, o que causava o vazamento de líquidos perigosos. ”

Costa disse que nos contêineres-tanque é mais fácil controlar a segurança, pois basta limpar o contêiner para a próxima carga, se estiver vazando. “Nossa principal preocupação eram as cargas perigosas NÃO transportadas em contêineres-tanque”, enfatizou o experiente Costa. “Passamos muito tempo repassando os procedimentos, treinando clientes para garantir que eles soubessem quais eram os procedimentos de segurança.”

A DatamarNews conversou com diversos gerentes e executivos dos terminais portuários de Santos e eles enfatizaram diversas vezes a importância do correto empilhamento das diversas mercadorias perigosas.

“É extremamente importante empilhar corretamente e manter os contêineres contendo produtos perigosos longe de outras cargas e espaçá-los”, disse um gerente de terminal.

“Trabalhamos aqui com airbags importados, para automóveis, e eles têm uma espécie de explosivo. Portanto, temos locais bem separados para armazená-los, então se um explodir não afetará os outros contêineres. E com gasolina e algodão é a mesma coisa.

“Existem parâmetros que podem ser seguidos para reduzir o risco e a compatibilidade da carga, que já fazem parte dos parâmetros do Navis. Seus sistemas já mostram os algoritmos para permitir a separação de contêineres perigosos de outras cargas”.

Luiz Araujo, diretor comercial do Ecoporto Santos, uma instalação de break bulk com vários guindastes, ecoou a importância do correto empilhamento de cargas perigosas, e acrescentou que os caminhões devem estar prontos para levar algumas cargas perigosas da classe IMO imediatamente fora das áreas do porto para locais de armazenamento mais seguros.

“No Ecoporto, movimentamos cargas perigosas tanto de exportação quanto de importação”, disse Araujo. “Algumas cargas perigosas não podem ser armazenadas nas áreas portuárias e devem ser descarregadas ou carregadas diretamente [em caminhões para transporte posterior].”

Um dos clientes do Ecoporto é a Avibras Industrial Aeroespacial SA, com sede no Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, que produz tanques para exportação e também os mísseis que os acompanham.

“O Brasil tem uma boa reputação de tanques blindados, pois a maioria é testado em nossas áreas de selva acidentada, em terrenos difíceis e durante a guerra Iraque-Irã eles forneceram tanques para ambos os lados!”

Obviamente, o Ecoporto tem muita experiência no manuseio de cargas perigosas, a granel e em contêineres, incluindo nitrato de amônia para a indústria de fertilizantes e agronegócios. A BBC Chartering e a Grimaldi são as duas principais operadoras que trabalham no terminal do Ecoporto Santos.

Araujo deu as boas-vindas às autoridades que estão trazendo fiscalizações mais rigorosas na esteira de Beirute, mas espera que não vão longe demais.

Há alguns anos, um incêndio fatal em uma boate de Porto Alegre (RS) gerou uma forte repressão às normas contra incêndios em todo o Brasil, em todos os setores, inclusive nos portos.

“Nossos depósitos agora precisam ter diferentes tipos de brigadas de incêndio de prontidão e sprinklers em todo o depósito por causa daquele incidente em Porto Alegre”, explicou Araujo. “E assim, após o terrível incidente em Beirute, as autoridades daqui provavelmente irão implementar novas medidas aqui em Santos.”

Fonte: Rob Ward para DatamarNews

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